Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Para o Cascão
Tens o olhar maroto dos crianças que o mundo poupou ao crescimento, tens o tamanho certo dos abraços para me receber quando estou cansada do mundo, tens o riso cheio de luz que me vai guiando nos dias de tristeza e a voz que diz a palavra certa no momento preciso.
Ou então não diz nada, mas o sorriso fala comigo e eu respondo-te e então damos a mão e vamos os dois à Feira Popular para esquecer entre tirinhos, farturas e voltas na Roda Gigante os teus e os meus desgostos, raparigas indecisas que povoam a tua imaginação, rapazes confusos que não sabem o que fazer com a minha determinação e a meias, como se de uma promessa se tratasse, esta vontade imensa de darmos amor, sem saber muitas vezes muito bem a quem.
As raparigas acham-te bonito e eu também, as raparigas acham-te divertido e eu também, algumas apaixonam-se por ti e de repente ficas com cara dos pai dos filhos que elas querem ter, outras não te levam a sério e como são sempre aquelas de quem tu gostavas de um dia ser o pai dos filhos delas, encolhes os ombros como se tivesse perdido meia dúzia de trocos a dar tiros a um alvo imaginário, enquanto o urso cor de rosa espreita do alto da prateleira, já sem esperança que apareça um pistoleiro implacável e leve o grande prémio para casa.
Mas sabes uma coisa? Enquanto tentamos e não acertamos, os ursos enchem-se de pó e passam de moda, no ano seguinte há outros bonecos mais giros e a vida, mesmo sem darmos por isso, vai-se encarregando de nos levar para outros lugares e nos mostrar coisas que nem sabíamos que existiam.
Se não fossem as tuas e as minhas tristezas, uma simples ida à Feira Popular numa segunda feira à tarde nunca teria o sabor da eternidade. Nunca fixarias a minha cara, perdida de riso em delírio de tristeza sublimada a cantar aos gritos ai como me duele el amor, às voltas sobre mim mesma num barco de borracha num lago verde com sessenta centímetros de altura, nem saboreavas as caretas concentradas do meu filho a curvar num carrinho de choque como se ele fosse teu, como se fosse filho de uma dessas raparigas que de vez em quando te roubam o coração.
Se não fosse a tua e a minha solidão tão desajeitadas quanto involuntárias, não saboreávamos com o mesmo prazer um sushi regado a saké frio, transformado em piadas as nossas desventuras, que te ajudam a esquecer as tuas loiras confusas e eu os meus rapazes indecisos.
A vida é feita de momentos e é a soma de momentos perfeitos que nos emprestam o sabor da eternidade e é por isso que a amizade e o mais belo dos sentimentos, porque é o amor sem crédito nem débito, porque nem pensamos antes de falar, porque sabemos que, digamos o que dissermos, o outro que és tu e que sou eu, vai perceber e aceitar tudo.
Por isso já sabes, sempre que me quiseres levar à Feira Popular para esquecer as tristezas e povoar as minhas noites solitárias de algodão doce, conta com o meu sorriso cúmplice e próximo e com o os meus abraços, que afinal são do tamanho dos teus, e tão grandes como o teu, ou o meu coração.
Como não acreditas nas minhas palavras, tiras-me a vontade de escrever. Claro que não te posso dizer isto assim, porque não acreditas nem aceitas o que te digo nem a forma como te digo. É claro que não tens culpa, ou a culpa não é tua, porque a escritora sou eu e se as minhas fontes secam ou as minhas musas perdem o encanto, o problema é meu.
O que tu não percebes é que o problema é sempre meu, quer eu escreva quer não, porque tu não acreditas nas minhas palavras e não acreditas nelas porque sou uma escritora. Irónico, não achas?
Se fosse mediadora de seguros e só usasse as frases para assinar contratos, todas as palavras de amor que te enviasse eram aceites como verdadeiras, porque não era esse o meu ofício.
Mas Deus deu-me este dom de transformar as palavras em histórias que correm no sangue dos outros como verdadeiras e este dom de dar vida às palavras vira-se agora contra mim. Só te falta citares uma frase de um filme americano em que um personagem depois de ter sido acusado de mentir, riposta num tiro certeiro:
E eu percebo-o porque a resposta, que tem tanto de verdadeiro como de cínico, é a única possível. O escritor pinta o mundo com as suas cores e disso retira as histórias. O escritor vive das palavras e para elas, perde-se no meio dos seus enredos e personagens, habita num mundo só dele e quando chega o final do dia e tem que regressar ao mundo real, doem-lhe os olhos, por ter sonhado tanto no seu mundo e por não o deixarem sonhar no mundo de cá.
Por isso, quando te escrevo palavras de amor e tu sentes que as roubei a outros sonhos e existências e te tornas polícia do que sinto, fazes-me sentir um ladrão que é preso sem ter sido apanhado a roubar.
Todos nós já usámos as mesmas palavras com pessoas diferentes, às vezes convencidos que estamos, pela primeira vez na vida a sentir o que nunca sentimos, para mais tarde descobrirmos que afinal estávamos enganados. Como quando pensamos que amamos alguém para sempre e um dia esse amor morre. Como quando alguém nos morre e pensamos que nunca mais vamos recuperar e um dia, uma rajada de vento fresco na cara, resgata-nos a alegria e nos esquecemos da dor.
Mas as palavras que não te escrevo – e que às vezes não te digo – ficam entaladas na garganta, porque são para ti e por isso são tuas e não me servem de nada se não as escrever, se não te as entregar, com a minha voz ou a minha escrita. Mas para isso tens que deixar de brincar aos polícias e ladrões comigo, tens que me ouvir com o coração aberto e esquecer que sou uma escritora e as uso no meu ofício. E tens que te lembrar que antes e depois da escrita, está tu. E eu. Num mundo só nosso, onde não há polícias nem ladrões.
Para o Duarte
A raposa olhou para aquele rapaz bonito e com um ar frágil e percebeu imediatamente que era um Príncipe. Em volta, não havia ninguém, apenas a cor dourada do trigo e o céu azul lá em cima, numa abóbada muito suave, a perder de vista. O Príncipe não tinha vindo de carro nem desembarcado de nenhuma nave espacial, por isso a raposa achou que ele tinha caído do céu, e depois riu-se para dentro, como quem descobre um defeito um bocado parvo na sua própria personalidade, porque nada cai do céu, tudo o que se consegue na vida custa muito a ganhar e é infinitamente mais fácil perder tudo do que manter o mais importante.
Mas, por outro lado, mesmo que tivesse caído do céu, se aquele rapaz tão bonito lhe tinha aparecido no caminho, alguma função iria ter na sua vida solitária e errante, sempre à procura de um abrigo que lhe servisse de casa, de um amigo que pudesse amar, de uma outra vida vivida em partilha, que já tinha lido em romances e visto em filmes, mas que nunca conhecera.
Como era muito curiosa e simpática, meteu conversa com ele.
- Quem és tu?
- Sou um Príncipe que quer conhecer o mundo. E tu?
- Sou uma raposa solitária e viajada que está farta de correr o mundo e quer encontrar uma casa.
- Isso deve ser aborrecido – respondeu o Príncipe.
- O quê? Ser solitária ou estar farta?
- Estar farta. Eu sempre fui um solitário e preciso da solidão para entender o mundo. E viajar é tão bom, como te podes ter cansado?
- É da idade – respondeu a raposa. E, com um suspiro, deitou-se e colocou graciosamente o focinho bicudo e brilhante entre as patas da frente, como quem passa muito tempo a pensar.
- Mas tu pareces tão nova! – estranhou o Príncipe.
- É da alimentação – respondeu a predadora – só como carne fresca. E dos tratamentos de pele.
- Eu acho-te muito bonita – arriscou o Príncipe, com um sorriso muito tímido.
- Obrigada. Eu também te acho muito belo. Um bocadinho triste, talvez.
Ficaram os dois a olhar um para o outro, partilhando um silêncio tranquilo e cheio de ideias, como só acontece entre velhos amigos. E eles já eram velhos amigos.
- Onde está a tua família? A tua mãe, o teu pai e os teus irmãos?
- Os mais pais são de outro planeta e não tenho irmãos.
- Oh!... – exclamou a raposa, desapontada - então não sabes brincar, nem discutir, nem partilhar brinquedos…
- Mas também não me importo. Como tenho um planeta para cuidar, tive que crescer muito depressa e prefiro pensar e conhecer, em vez de brincar e partilhar.
- Eu tive sete irmãos – contou a raposa, orgulhosa – por isso cresci a brincar.
Levantou o focinho, depois as patas dianteiras, depois o torso, e ficou sentada, muito direita, a olhar fixamente para os olhos do Príncipe. Já estava apaixonada por ele e queria prender-lhe o olhar para sempre, porque sabia que o ia perder e queria guardar o melhor dele. Mas os olhos dele eram difíceis de agarrar, porque as imagens lá dentro estavam sempre a mudar e a raposa percebeu que ele estava perdido e não sabia o que queria.
- Queres fazer um jogo comigo? – perguntou, com um sorriso matreiro.
- Não sei se consigo – respondeu o rapazinho, agarrando nervosamente as pontas do cachecol.
- É muito fácil. Eu faço-te uma pergunta e tu respondes. E como é tudo a brincar, podes responder o que quiseres. Gostavas de ser uma raposa?
- Não
- Porquê?
- Porque não podia mandar em ninguém.
- Assim não jogo – disse a raposa, subitamente entristecida – tu só sabes falar a sério.
- Não é verdade – respondeu o rapazinho – eu só sei é dizer a verdade e quase ninguém aguenta a verdade o tempo todo. Por isso e que ando sozinho.
A raposa baixou outra vez o torso e voltou a encaixar o focinho por entre as patas. Tinha que pensar muito bem no que ia dizer a seguir, porque, como estava apaixonada, ardia ao mesmo tempo de medo e de vontade e queria fazer as coisas o melhor possível.
- Eu acho que tu podias escolher ser feliz.
- Mas eu sou feliz - respondeu o Príncipe. Eu amo o conhecimento e vivo de acordo com a minha paixão; viajar, correr o mundo, conhecer seres maravilhosos, como tu… - e, dizendo isto, sentou-se ao lado da raposa e pousou a sua mão branca e lisa no lombo dela. A raposa estremeceu das patas à cabeça. Queria guardar para sempre aquele toque, o calor da mão dele a inundá-la por dentro. Queria tornar-se numa animal doméstico devoto ao seu dono. Queria mudar de vida e alcançar a outra, a sonhada e desejada, depois de tantos livros e filmes. Mas ele também tinha que querer o mesmo que ela, ou corriam o risco de ficar apenas os melhores amigos.
Então a raposa pensou, pensou e decidiu ficar calada. Tudo o que dissesse dali para a frente ia estragar o seu sonho, o momento perfeito que lhe tinha caído do céu. Sabia que queria que aquele momento se eternizasse, por isso fechou os olhos.
Tudo tem um princípio e tudo tem um fim, pensou. Mas não vou pensar no que não está nas minhas mãos. E, sem falar, enroscou-se a ele, como se fosse para sempre.
Welcome Mr Chance. Há um filme com este título, não há? Não me lembro da história, mas gosto da ideia de um homem que se chama sorte, e esse homem podias ser tu.
Dizem que o amor é sorte e a felicidade uma vocação. Demorei muitos anos a perceber que o amor era uma coisa e a felicidade outra. Pensava que o primeiro guardava a receita mágica para a segunda, como o açúcar para os bolos e a fermento para o soufflé. Queria tudo, sempre quis tudo e sempre pensei que aquilo que mais desejava, se fosse bom para mim e o melhor para os outros, acabaria por se tornar em realidade.
Já fizeste um dominó? Já pensaste que a existência humana é tantas vezes assim? Passamos dias, semanas, meses, anos a construir os nossos sonhos e, num breve instante, alguém tropeça neles e tudo se desfaz, numa sucessão de azares impossível de travar. E tudo se desmorona como um castelo de cartas.
Quando o meu dominó começa a cair, junto-lhe mais peças na cauda e aproveito para limpar fantasmas na enxurrada. Ao menos sofro tudo de uma vez, condenso a frustração num par de dias e depois fico a enxaguar a tristeza até ela secar ao sol.
Então, com muita calma, começo a montá-lo outra vez e, aos poucos, vejo-o
a crescer sozinho, como se o embate que fez cair as peças tivesse o poder de as levantar.
A esta capacidade rara de transformar problemas em soluções e encontrar novos caminhos em encruzilhadas, já chamaste persistência e sentido de justiça.
Sou e serei a mulher mais persistente que se cruzou no teu caminho, nunca conhecerás outra que acredite tanto na justiça dos seus sonhos e que por isso mesmo, nunca desista deles.
Mas ninguém consegue construir uma ponte sozinho, nem carregar um piano, nem mudar uma casa, por isso aprendi algo mais difícil; aprendi a não fazer nada quando aquilo que mais quero e desejo não depende só de mim . E com essa nova e preciosa lição veio a paz, a tranquilidade, a harmonia dos dias sossegados e das noites de sono profundo.
Aprendi muito contigo, com certeza mais do que imaginas possível. Aprendi com os meus erros, porque é quando se perde, que a lição é mais importante. Devia ter ficado quieta mais vezes, devia ter respeitado o teu silêncio e o teu espaço, deixar-te em paz em vez de te pedir o mundo, porque iria sempre amar-te, estivesses ou não ao meu lado, porque fazes parte de mim, mesmo sem saber se és a primeira ou a última peça do meu dominó, mesmo sem saber se o vais levantar ou deitar abaixo.
O amor tem o seu próprio mistério, tentar desvendá-lo é um erro, tentar apressá-lo um crime. Mas se um dia destes te apetecer voltar para os meus braços e construir um sonho comigo, podes bater à porta porque estarei por aqui, mergulhada numa paz tranquila e nova que me ensinaste sem saber.
O amor é mesmo assim; damos aos outros o nosso melhor sem sequer o saber. E tudo o que damos nunca se perde, nada se perde, apenas se transforma e se guarda numa caixa que só o futuro conhece e desvenda.
Quando for grande quero ser como a minha irmã Luísa que colecciona namorados como tops da Zara. Eu tenho 14 anos e a Luísa 21. É filha do primeiro casamento da minha mãe, eu sou filha do segundo. Quando a minha mãe nos apresenta a alguém diz sempre: esta, que ainda se há de casar com um futebolista, é filha do Victor, e esta, que um dia há de ser magra, é filha do Alberto. É a lei d vida. A Luísa, que tem umas grandes mamas e cintura de vespa, vai safar-se de qualquer maneira. Já eu, mesmo sendo a melhor da aula, como sou gorda e tímida, estou tramada.
Nem o pai da Luísa nem o meu vivem ainda lá em casa. A Luísa diz que o pai dela e a nossa mãe ainda estão apaixonados e que é por isso que o meu pai se foi embora. Se calhar é verdade. A minha mãe nunca tirou das molduras as fotografias do casamento com o Victor, ele de fato azul claro e gravata lilás e ela mascarada de bolo de noiva, pirosa até rebentar, isto sem falar do facto de estar tão gorda que os pontos das costuras do vestido parecem querer a saltar a qualquer momento. Mas o pior é o chapéu em forma de nuvem, cheio de penas pequeninas que parece um ninho de ratos. Naquela época a minha mãe pensava que era a Madonna e o e o meu pai pensava que era o rapaz do Kit, aquele carro preto todo artilhado que tinha luzes vermelhas no capô.
Eu tenho pena da minha mãe. A avó Vitória diz que a culpa de nunca ter acertado com nenhum homem é dela, que quer sempre aquilo que não tem. Quando estava casada com o Victor dava conversa a outros, e depois, quando se casou com o meu pai, dava conversa ao Victor.
Mas a Luísa ainda é pior. Dormiu com todos os rapazes da turma do décimo segundo – eram 12 – e desde então habituou-se a trazer para casa um palerma qualquer cada vez que sai à noite. Chama-lhes Douradinhos e quase nunca lhes dá o telemóvel, a não ser que tenham um jipe ou um descapotável.
A minha mãe emprestou-lhe a garagem para ela viver, assim finge que não vê os disparates que ela faz e não ralha com ela. Diz-lhe que faça os disparates que quiser, desde que não case nem engravide. Eu não acho isto nada bem, mas como sou a gorda da casa, ninguém liga ao que eu penso.
Outro dia o meu pai veio-me buscar num sábado de manhã e vê sair um cromo da garagem com uma crista e um piercing, entra em casa e desata aos gritos com a minha mãe, a dizer que isto não pode ser, que a galdéria da outra é um mau exemplo para mim e que se isto continua assim, vai ao tribunal e pede a minha guarda ao juiz para eu ir viver com ele. Só que eu não quero ir viver com ele, não troco a casa com jardim em Massamá por um segundo frente em Queluz num prédio cheio de velhos e gente esquisita.
Mas o meu pai tem razão. Também é um bocado gordo, coitado. Gordo e triste. Desde que separou da minha mãe nunca mais teve uma namorada. A Luísa diz que ele nunca mais encontrou uma mulher a sério e que ficou traumatizado. Se calhar é verdade e se calhar ele até me dava uma educação melhor do que estas duas malucas, mas eu ia-me chatear que nem um peru enfiada no andar de Queluz a ver televisão por cabo. Cá em casa tenho novela em directo, com os casos semanais da Luísa e as aventuras da minha mãe.
Será que quando for grande, também vou ser assim como elas? Quero ir para Direito e depois ser advogada de divórcios. Dizem que dá dinheiro e além disso já levo um estágio de casa. Ao menos não fico a dobrar camisolas e tops na Zara como a Luísa, que trabalha dois fins de semana por mês e não ganha mais por isso. E se eu emagrecer quando crescer e for elas, sempre distraídas com um palerma qualquer, à procura de um otário que as leve a almoçar à marisqueira e as encha de bugigangas e trapos?
O melhor é começar já uma dieta, porque ainda faltam muito anos para a universidade e até lá, não vou morrer estúpida. Quem sabe ainda fico magra e lhes apanho os restos, como os cães vadios quando viram os caixotes do lixo. Afinal, também quero se protagonista de uma novela qualquer, por mais pirosa que seja.
Acordou sobressaltada, com o cabelo em desalinho e o corpo ainda a escaldar. Os primeiros raios de sol anunciavam-se timidamente pelas frestas da persiana. Olhou à sua volta. O quarto estava virado de pernas. À entrada, as sandálias dela e os ténis dele. Junto à cadeira, a saia vermelha que vestira naquela noite, o top branco que teimara em pôr sem soutien apesar do peito já farto e já um pouco descaído e as calças dele, tudo enrodilhado como um novelo gigante. Mesmo ao lado da cama, as suas cuecas encarnadas de renda e os slipes pretos dele. Lembrou-se de quando o viu despido lhe agradaram os slipes, pretos e justos à pele, pondo em evidência o seu sexo já visivelmente excitado... Suspirou e olhou parta ele. Estava a dormir profundamente, com os braços debaixo da almofada e o cabelo despenteado sobre a testa.
Nem sequer se lembrara de lhe perguntar a idade. Tinha medo da resposta. Ela, que já passara há alguns anos os 40, sentia-se um pouco cheia e cansada. Em nova, era uma beleza espampanante, um género de Amália, bem nutrida de peito e ancas, com o cabelo negro e a boca da grande fadista. Por ironia do destino a mãe chamar-lhe Amélia, por ser este o nome da sua avó, mas à medida que crescia e se lhe notavam mais parecenças com a cantora, passou a pedir toda a gente que lhe chamasse Amália. Comprava os figurinos e as revistas onde apareciam fotografias da outra, a verdadeira e imitava-lhe as roupas e os penteados. Quando apareceu a televisão, escapulia-se para o café onde havia o único televisor do bairro para ver a sua heroína. E quando via a fadista no pequeno écran imaginava-se também ela de xaile preto a cantar Que destino ó maldição, manda em nós meu coração, um do outro assim perdidos...
Era tão lindo aquele fado sobre o amor desencontrado, até dava vontade de chorar. Amélia tinha um coração de manteiga e era de lágrima fácil. Não podia ver um cão abandonado, um mendigo sem amparo, uma criança a chorar, vinham-lhe logo as lágrimas aos olhos. Os rapazes do bairro onde crescera, todos a cobiçavam. Américo, o filho do padeiro, Pedro, o filho do droguista e até o Sr. Antero, um viúvo de 50 anos que geria uma taberna próspera e sempre cheia. Mas Amélia sonhava com o mundo do espectáculo. Pensava que se era tão parecida com a grande estrela do fado, quem sabe, um dia, não poderia fazer também ela carreira artística e tornar-se uma vedeta?
Um dia, encheu-se de coragem e foi ao Parque Mayer tentar a sua sorte. Entrou pelas traseiras do teatro onde estavam a fazer audições para uma nova revista intitulada “As Louras da República”. Amélia não era loura e por isso foi assobiada assim que pisou o palco de Bariedades. Mas o encenador viu imediatamente nela a parecença com a cantora e perguntou-lhe se sabia cantar. Amélia afinou a garganta, abriu a boca e cantou uma quadra de um fado, mas o encenador fez-lhe sinal com a mão e pediu-lhe que esperasse até ao fim das audições.
Amélia esperou duas horas, sentada num banco de pau ao fundo do corredor, enrolada no seu xaile preto. Retocou o batom com a ajuda de um pequeno espelho e pensou que a sua hora estava a chegar. Algum tempo depois, o encenador apareceu.
Essa noite mudou a vida de Amélia. Ele levou-a a um restaurante muito fino onde a Amália cantava, Amélia ficou tão impressionada que pediu á fadista um autógrafo que guardou no soutien. Ele deu-lhe a beber vinho engarrafado doce e suave, como ela nunca provara, empanturrou-a de doces e rebuçados e quando acordou no dia seguinte já era uma mulher. Tinha perdido a virgindade e a inocência e tinha ganho um amante.
Américo foi-lhe prometendo grandes papéis na revista, enquanto lhe dava pequenas participações. Ela fazia sempre de figurante, quase nunca falava, mas sentia-se feliz. Ele arranjou-lhe um apartamento acanhado numas águas furtadas no Bairro Alto, comprou-lhe algumas mobílias de estilo e os bibelots de que ela gostava e visitava-a quase todas as tardes. Bebia muito e às vezes ficava com mau vinho. Batia-lhe, chamava-lhe nomes e dizia que a ia deixar, mas um ou dois dias depois, voltava com uma flores, uns bom-bons ou trezentas gramas de línguas de gato compradas na Bénard e faziam as pazes.
Amélia estava presa a tudo aquilo. Os pais cortaram relações com ela depois dela Ter saído de casa, chamam-na perdida e não a queriam ver. Amélia agora não tinha família. O Américo era a sua família. Um ano depois de viver com ele deu à luz uma menina, a quem chamou Amália. Américo não a quis perfilhar, mas ela criou a menina com todo o amor e para que nada lhe faltasse, começou a fazer rissóis e croquetes para a taberna do Sr. Antero, que lhe ia buscar as encomendas às escondidas do Américo e lhe deixava o dinheiro debaixo do tapete da porta de casa.
A menina cresceu, foi para a escola, depois para o liceu e Amélia começou a ver na filha a cara e o corpo que um dia tivera e que de tanto se orgulhava. Estava cansada, tinha as pernas gordas e o cabelo já ganhava alguns brancos. A filha, por seu lado, tinha tanto de bonita por fora como de feia por dentro. Herdara o mau carácter do pai e estava sempre a criticar a mãe. Chamava-lhe nomes e não lhe perdoava o facto de nunca se ter casado com o pai dela. No dia em que este morreu, Amélia recebeu a visita de um senhor de bigode que lhe disse que Américo era casado e por isso lhe deixara vinte contos por caridade, já que nada do que ele tinha lhe pertencia por direito.
O homem de bigode e ar grave que era o advogado de Américo explicou-lhe que ele nunca reconhecera a filha e que até insinuara por diversas vezes que a menina nem fosse sangue do seu sangue.
Amélia chorou lágrimas amargas de tristeza e revolta. Nunca amara outro homem, sempre lhe fora fiel, apesar das propostas do Sr. Antero que, quando lhe deixava o envelope com o dinheiro dos rissóis debaixo da mesa, vinha sempre com um bilhetinho a insinuar que quando ela quisesse podia contar com ele como muito mais do que amigo. Qual quê! Amélia era fiel ao seu homem, viva para ele, aturara-lhe as tareias e o mau vinho e ele deixava-a assim desamparada e sem ter como sustentar a menina?
O advogado sossegou-a, deu-lhe uma pasta com papéis a provar que o andar estava em nome dela que por isso não tinha que pagar a renda.
Amélia não queria nada, coitada. Só queria se artista e cantar como a Amália quando era nova, mas agora era tarde, os sonhos esfumavam-se como nuvens no céu. Tinha trinta e sete anos e a filha quinze.
Amália quis descobrir quem era a família do pai. Foi à lista telefónica e encontrou uma morada na Avenida de Roma. Meteu-se no autocarro e foi lá ater à porta. Abriu-lha uma criada fardada que lhe perguntou quem era e o que queria. Amália ficou sem resposta e virou costas. Viu um par de enormes candelabros de prata em cima do aparador da entrada e um quadro antigo. O pai devia ter tido muito dinheiro, pensou, mas nada daquilo era para ela.
Semanas mais tarde, uma vizinha perguntou-lhe se queria ir trabalhar como ajudante de cozinha num restaurante português em Toronto e a rapariguinha abalou, deixando a mãe sozinha. Escrevei-lhe um postal no Natal e nunca lhe mandou dinheiro. Casou com um canadiano que a mãe nunca conheceu e teve dois meninos. Amélia ia sabendo das notícias pela vizinha e foi ficando cada vez mais só.
Um dia, deu-lhe na veneta voltar ao Parque Mayer para ver um revista. Os mais antigos reconheceram-na e convidaram-na para ir ter com eles aos camarins no fim do espectáculo.
Foi aí que o conheceu. De tronco nu, suado, depois de ter participado como dançarino no último quadro da revista. Era um rapaz bonito, de olhar doce e tímido que chegar há poucas semanas a Lisboa, fugido do Funchal onde o padrasto o forçava desde o dez anos a ter relações com ele. Dormia numa pensão, num quarto com quatro beliches onde dormiam mais três maricas que não paravam de o assediar.
Amélia encheu-se de pena do pobre rapaz. Afinal ainda tinha o sofá-cama na sala onde a sua filha dormia, antes de partir para o Canadá. O rapaz tinha um ar tão sofrido e triste... Amélia quis tomar conta dele. Convidou-a para viver lá em casa. O rapaz, agradecido, foi buscar os trapos à pensão e instalou-se. Era sossegado e como comia pouco, por isso dava pouca despesa. Ao fim do mês pagava-lhe dez contos pela dormida e ia de vez em quando às compras; ao talho, à mercearia, à pastelaria comprar-lhe as línguas de gato que ela tanto gostava.
No dia em que Amélia fez 42 anos, levou-a a jantar fora e ao cinema. Amélia vestiu o seu melhor vestido preto, tirou da caixa os sapatos de verniz que não calçava desde os tempos da juventude e pôs ao pescoço o fio de outro com uma medalha com a Nossa Senhora que era a única jóia que tinha, deixada pela sua avó.
O rapaz agradeceu-lhe tudo o que fizera por ele e nessa noite quis dormir na cama dela. Amélia a princípio repudiou a presença dele, mas quando o viu outra vez de tronco nu a garra-la com força. fechou os olhos e deixou-se ir naquele sonho absurdo e impossível. Ele penetrou-a uma, duas, três vezes, até se sentir saciado. Depois adormeceu ao lado dela e ela ficou ali, parada e perplexa a olhar para ele sem perceber muito bem o que lhe tinha acontecido.
Os vizinhos começaram a comentar. Agora os dois saíam de braço dado, iam ao cinema e à revista, ela comprou-lhe roupas caras com as suas economias e o rapaz convenceu-a a comprar um carrito em segunda mão. Em poucos meses, Amélia esbanjou anos e anos de poupanças sacrificadas e apertadas. Estava tão feliz! O rapaz cumpria o papel de marido todas as noites, elogiava-lhe o corpo roliço, espremia-lhe o mamilos com força e sugava-os chamando-lhe mamã, apertava-lhe as nádegas e uma vez ou outra dava-lhe umas palmadas quando tinham relações, mas ela desculpava tudo, achava que era sinal de virilidade.
Tornou-se numa velha gaiteira, como se quisesse recuperar a juventude perdida. Foi subindo as bainhas das saias e apertando as camisas para se lhe realçar os peitos cheios e redondos. As vizinhas chamavam-lhe ridícula, mas Amélia não se importava. Depois de uma vida de sofrimento e tristeza nunca pensara que podia afinal ser tão feliz. Ele tratava-a bem. É certo que havia noites que não dormia em casa.
Mas quando voltava, cobria-a de beijos e entesava-se por ela. Levava-a para a cama e fazia amor com ele me várias posições, apertava-a contra si chamava-lhe minha querida. Amélia tinha agora tudo para ser feliz: um homem que a amava com virilidade, mas que não bebia nem a tratava mal e ainda por cima, muito mais novo e bonito. Gostava tanto dele que até lhe mandou arranjar os dentes. Foi um dinheirão, para cima de cem contos, mas o rapaz ficou ainda mais bonito.
Passou-se um ano. Numa noite de chuva, tocaram à porta. Amélia foi abrir. Era Amália a sua filha, com duas malas que voltara do Canadá. Amélia espantou-se com o regresso inesperado da filha. Perguntou-lhe pelo filhos e esta respondeu-lhe que tinham ficado com o pai. Amélia quis saber o que se tinha passado, mas a filha disse-lhe que não tinha nada para lhe dizer. Tinha-se vindo embora e pronto.
Quando viu o rapaz, sentado na sala de chinelos e roupão perguntou-lhe quem era aquele estranho em casa. Amélia explicou-lhe que era um hóspede e nessa noite o rapaz voltou a dormir no sofá-cama. Amélia ficou muito aflita. Não sabia o que fazer. Naquela noite nem dormiu, a pensar como é que ia explicar à filha que sustentava um homem muito mais novo do que ela a quem já comprar um carro.
No dia seguinte, Amália disse-lhe que não se importava que a ela tivesse um hospede, porque estava só de passagem, tinha arranjado um emprego num bar em Espanha e estava de abalada. Amélia ficou feliz. Quando a filha se fosse embora, tudo voltaria ao normal.
Um dia, acordou de manhã e a filha já tinha abalado. Foi à sala e o rapaz não estava lá. Nem o rapaz, nem as roupas dele. Foi à janela e não viu o carro estacionado na rua. Desesperada, vasculhou as gavetas à procura do fio de ouro com a medalha de Nossa Senhora. Em vão. O fio também desaparecera. Só ficaram as línguas de gato e um bilhetinho escrito à pressa que dizia: Desculpa Amélia. Apaixonei-me pela tua filha. Nós um dia voltamos.
Meteste-te num avião à pressa e deixaste o meu coração em estado de sítio. Às vezes ainda caio na armadilha do teu charme, vou jantar contigo como quem vai ao cinema com um velho amigo e quando me levanto da mesa depois de duas horas de êxtase, demoro três semanas a descer outra vez à terra.
O meu pai sempre me disse que o maior perigo do mundo não são as guerras nem os ditadores, nem sequer as catástrofes naturais, mas as mulheres com as suas peles de seda, o olhar vítreo a pedir protecção, as bocas de desejo e as curvas infinitas no corpo que despistam os homens, os deixam sem norte nem direcção e lhe estragam a vida.
E tu és a pior de todas. Apareces e desapareces como uma bruxa e ris-te do meu amor louco e desajeitado por ti como se eu fosse um cão e tu o gato que me toureia e atormenta. E eu sinto-me um cachorro, um palerma, um fraco, um idiota cada vez que te vais embora a me castigas com semanas a fio de silêncio, cerro os punhos, olho-me ao espelho e vejo na imagem um homem de meia idade, já com pequenas rugas junto às orelhas e alguns pêlos impertinentes que teimam e descer pelas narinas e sinto que não sou nada nem ninguém enquanto não me esquecer de ti.
Sempre tive medo das mulheres e as mulheres nunca olharam para mim. Se a minha mãe for ainda viva, duvido que se lembre da minha existência. Queria uma filha e apaixonou-se por outro homem, disse-me o meu pai quando fiz dez anos. E também me disse, cuidado filho, que isto não é um país, é uma "paísa", são elas que mandam em tudo e se não tiveres cuidado vão mandar em ti, usar-te e deitar-te fora como um trapo velho.
Mas eu gosto de ti, que és meia estrangeira e meia louca, que tens olhos de gato e curvas de égua, que falas um português criativo e escreves mensagens escritas com erros de palmatória. Preciso de ti como do ar porque és impossível de agarrar, sem ti a vida é um tédio, uma morte adiada e nem a Luisinha que trabalha no economato me consegue consolar com os seus bolinhos de mel e as suas visitas de Tupperware, caldo verde e bacalhau à Braz, uma vez por semana ao meu apartamento acanhado na Graça que herdei da minha mãe, talvez a única que me deu na vida.
A Luisinha também tem curvas e um cabelo que cheira a flores, fala baixinho como um pássaro e rebola-se na cama comigo como um bicho, mas não tem o teu mistério nem o teu charme, não lhe corre nas veias o sangue mestiço que te trouxe até Lisboa nem sabe dizer palavrões quando estás feliz como tu fazes nas noites em que te dou uns copos e te levo para casa. Tu entras sempre antes de mim, olhas em volta como quem visita a casota de um cão, fazes um ar de dó que me faz sentir um verme e depois deitas-te comigo porque te dou pena, porque te apetece ter sexo, porque sabes que ao menos em mim podes confiar, que nunca te vou bater e te empresto dinheiro sempre que precisares.
Daqui a dois ou três meses tu vais voltar, voltas sempre porque mesmo sem teres terra sabes que é aqui o teu canto e eu sonho com o dia em que te vais cansar de subir a um palco, roçar o corpo numa vara besuntada de óleo, de provocar orgasmos em mais de vinte homens por noite e te decidas a ficar ao meu lado. Quando a reforma chegar, tenho dinheiro de sobra para te levar de viagem todos os meses e fazer de ti uma princesa, por isso demora o tempo que quiseres, que eu por cá me aguento, entre mortos e feridos, atrás das trincheiras do meu coração de cão fraco e tonto.
“…a chaga de amor é como a da seta: repentina, estreita na ferida, funda na penetração, não fácil de ver, difícil de tratar e custosa de sarar. A quem a observa pelo lado de fora, parece uma ninharia, mas, examinada interiormente, é altamente perigosa e as mais das vezes converte-se em fístula incurável.”
Leão Hebreu in Diálogos de Amor
Quis o destino que nunca acertasse uma seta na minha vida, embora a história do meu coração tenha sido mostrar aqueles que amo os caminhos do bem-estar e da alegria. E eu já atirei muitas setas, sempre na esperança de causar nos outros corações sobressaltos mais belos e doces do que os infligidos no meu coração hospedeiro, mas talvez não faça parte do meu caminho receber amor da mesma forma e com a mesma intensidade com que o espalho por outros corações, talvez apenas me seja permitido provar em breves instantes a ilusão de um sonho que a outras almas parece afinal tão fácil, simples e natural.
Por exemplo, na minha família nunca houve uma separação; pai e mãe, avôs e avós, tios e tias, irmãos e cunhadas, irmãs e cunhados, primos próximos e afastados, nunca a palavra divórcio se pronunciou para retratar a realidade, porque nunca ninguém a viveu na pele. Tias avós solteiras, isso sim, como em todas as famílias que se prezam, mas não sei se contam, porque uma era louca e a outra era lésbica e sempre viveu com a sua melhor amiga, colega do colégio interno e parte integrante da sua vida desde os dez anos.
As festas de família são um calvário e para as aguentar, tenho que deixar o coração em casa, embrulhado num papel de jornal, como o arroz, para não arrefecer. Chego a casa de um parente qualquer, tanto faz, porque são todos iguais na sua desesperante normalidade, e sou imediatamente invadida pela felicidade alheia, a felicidade das pessoas medianas que nunca perderam tempo a ler Nietzsche nem Virginia Woolf. Em vez disso preferem queimar as horas do fim de semana em grandes armazéns de decoração ou hipermercados a perder de vista, escolhendo almofadas e batedeiras, pormenores que vão compondo o lar e ajudando a criar a ilusão de uma vida organizada.
Eles sim, conhecem o sabor da continuidade. É a continuidade que salva o amor. Às vezes parece rotina, outras monotonia, outras segurança, umas vezes não se aguenta, outras parece tudo na vida. O amor é sobretudo o hábito. Acordar todos os dias, olhar para o lado e ver a mesma cara, sentir o cheiro do mesmo corpo, saber de cor todos os movimentos, adivinhar os sorrisos e os silêncios, viver debaixo da pele do outro, ou melhor ainda, trocar de pele com ele.
É a continuidade que alimenta o coração, que lhe dá força e segurança, que o segura do vazio e do abismo. Por isso amamos os nossos pais e cuidamos deles quando a idade ou a doença nos avisam que em breve os podemos perder, por isso o nosso corpo manda vir os nossos filhos, por isso adoptamos amigos para a nossa família, por isso temos cães e gatos e afilhados, por isso construímos casa sólidas e escrevemos livros. Para poder dar continuidade a uma existência que nos foge, que os desgostos cansam e a solidão mata.
Mas há corações a quem é vedada esta paz, ou porque não a sabem construir, ou porque a vida não lhe permite saborear outra dimensão da existência.
Dentro do meu coração hospedeiro, que sabe receber e fazer sentir os outros corações como se estivessem em casa, que dá amor sem pensar e trata cada passageiro como se fosse o último, procuro ainda o meu coração gémeo, na esperança secreta e nunca perdida de um dia deixar de viajar e sossegar para a vida. Não sei onde está, se o que nos separa são rios e estradas ou apenas a distância de um braço, mas se fosse amiga do Aladino, pedia-lhe a lamparina emprestada e trocava com o génio dois desejos por um, porque tudo o que um coração quer e sonha é encontrar o seu par, que não precisa de ser do mesmo tamanho nem da mesma cor, apenas que bata ao mesmo tempo e pela mesma causa.
Talvez assim, finalmente as minhas setas não se percam num arco de espera e de ilusão, teimosas e voadoras, para cair do céu aos trambolhões como foguetes em noite de festa que brilham só para os outros e por escassos segundos.
“ A suicídio não é querer morrer, é querer desaparecer”
George Perros
Nunca lhe disse que era gay. Nunca lhe disse porque nunca consegui olhar-me no espelho e dizer à imagem que ele reflecte:
- Tu és gay.
Apesar do espelho mostrar o homem que sou eu. E é isso que eu vejo, um homem.
Nada no meu aspecto físico, atitude, modos ou trejeitos denuncia a minha ambivalência sexual. Não tenho ataques de nervos, não vivo obcecado com a minha mãe ou com o estado de limpeza e conservação das minhas unhas, não passo férias em Ibiza, não me sento para mijar, não gosto do Sexo e a Cidade, odeio a Gloria Gaynor e nunca fui a um bar da classe. Quando me cruzo com eles no Chiado organizados em bandos compactos, são como os pombos da Praça do Camões, tontos e interesseiros, barulhentos e feios, de papo cheio e cabeça vazia. Odeio bichas, detesto paneleiros, os homens com cabelos de mulher ou caras de menina enervam-me. Mas gosto de homens porque gosto de mim. E gosto do que vejo ao espelho.
Ela também gosta de mulheres. É, tal como eu, um dos manequins mais requisitados da agência. Juntos podíamos ir até ao fim do mundo sem nunca nos cansarmos e sem cheirar uma linha de coca. Ela é tudo muito: muito alta, muito magra, com uma boca imensa e uns olhos gigantes, o cabelo é infinito, tal como o pescoço, as mãos, os dedos das mãos e os pés. Calça 42. Isso mesmo. Se não calçasse 44 nunca teria tido tomates para me meter com ela. Um tipo não pode calçar o mesmo que a namorada. Pode ser da mesma altura ou até mais baixo, quando ela se veste para uma festa e se pendura nuns saltos agulha que lhe alongam as pernas, mas calçar o mesmo número é que não.
A Marta calça 42 e veste 36. Tinha um corpo perfeito até a booker da agência que já foi manequim até o marido lhe desfazer a cara num desastre de carro lhe meter na cabeça que devia pôr silicone porque podia fazer mais publicidade. E a Marta operou-se para trocar as passerelles por anúncios de telemóveis e refrigerantes. Esteve três dias a gemer, duas semanas de molho e agora só usa tops, decotes e vestidos sem alças para exibir a mercadoria. É raro uma cabeça não se virar à sua passagem, mesmo quando vai ao meu lado. É uma bomba e eu sei que me apaixonei pela sua beleza e não por ela, mas como para as mulheres é a mesma coisa, nunca me dei ao trabalho de lhe explicar. Não é que ela não percebesse; a Marta está no último ano de Psicologia, tem um curso de Macrobiótica, faz Reiki e tem uma intuição especial para o Feng Shui. Lê dois jornais diários e o Expresso à sexta-feira, gosta dos documentários do Canal 2 e sabe dizer quantos conflitos armados existem actualmente no planeta por falta de água e onde ocorrem os mais graves.
Tem uma tatuagem na parte de dentro do tornozelo, um hieróglifo do tempo da Cleópatra que ela diz que quer dizer o espírito divino está no corpo. Não acredito, nunca acreditei, mas se ela insiste na mística profunda da sabedoria milenar para se escudar numa imagem que ela julga ser interessante para os outros, quem sou eu para lhe contrariar a vontade?
Já dormi com quase todas as miúdas da agência e com mais de metade das que trabalham para a concorrência. Encontramo-nos nos castings, nos desfiles, nas festas, nos concertos de verão, na rua, na agência. Elas tropeçam nos meus pés, eu agarro-as com os olhos e o meu sorriso que já vendeu carros, lâminas de barbear, cartões de crédito, móveis, férias, seguros, ténis e condomínios fechados prende-as como uma fita de seda e elas deixam-se ir, como se deixam todas as mulheres quando um tipo lhes apanha a chave entre o corpo e o coração.
Mas a Marta é diferente. Nunca tive de a seduzir porque foi ela que se meteu comigo. Agarrou-me o pulso direito numa festa de entrega de prémios e sem dizer uma palavra meteu-me no Smart e levou-me para casa. No dia seguinte desapareceu durante uma semana para eu perceber que nunca teria poder sobre ela. Depois reapareceu como se nada fosse, com o Expresso debaixo do braço e desde então passámos a ir ao cinema, ás compras e a dormir juntos quatro ou cinco noites por semana. Com a Marta é diferente porque sei que ela nunca se vai apaixonar por mim. Nunca me vai fazer perguntas chatas nem exigir horas certas para nada. Não vai falar em férias na praia da infância dela, baptizados de sobrinhos ou aniversários de casados dos pais. Nunca vou conhecer ninguém da família dela porque a Marta é uma animal selvagem e já se deve ter esquecido do nome dos pais. Só lhe conheço as amigas com quem ela gosta de dormir, de vez em quando diz ela, quando a carne pede mais carinho do que força e a pele precisa de mais calor do que peso.
Há noites de sorte em que trazemos uma miúda para casa e quando isso acontece é sempre ela que as traz como quem foi apanhar um cesto de fruta ao pomar, aparece-me com um sorriso triunfante e um brinquedo debaixo do braço, gosta delas mais baixas, diz ela, para lhes ver os olhos a revirar quando as começa a encher de beijos enquanto as mãos que nunca mais acabam exploram com artes de cirurgia um novo corpo, cheio de mistérios e segredos.
Nunca lhe disse que também gostava de fazer isso aos homens, de os dominar como a vejo dominar as miúdas porque não tenho a certeza que ele me compreendesse. Não sou gay, gosto de brincar com os corpos dos outros. Quando era criança nunca me interessei por carrinhos, comboios ou outros seres inanimados, deve ser daí que vem o fascínio por corpos masculinos, estátuas de David que existem nos ginásios, nos clubes desportivos de bairro, nas associações recreativas onde o boxe é uma religião.
Nunca lhe disse que antes de ter dormido com mulheres gostava de me deitar com homens, que foi com eles que descobri os primeiros prazeres e o primeiro prazer é como o primeiro cheiro, uma pessoa acha que não foi nada de especial e depois não pára de pensar no momento em que o vai repetir. E como todos os prazeres, a repetição nunca é igual, mas uma declinação do que se viveu, uma sombra do que já foi, ás vezes mais forte, cada vez mais forte até se tornar muito mais forte do que nós.
Tenho casos com outros manequins da agência, mas só com os que são como eu, que vivem com a namorada ou têm fama de machos porque não aguento bichas nem senhoras com uma pila entre as pernas.
Há duas noites sonhei que a Marta descobria a minha vida secreta, entrava em casa um dia mais cedo do que era previsto – ela passa a vida a ir para Alemanha fazer catálogos de vendas por correio – e me encontrava com o Paulo na cama. No meu sonho ela escorregava para debaixo dos lençóis pretos e brincava com os dois, pedia a cada um de nós que a comesse e ria-se muito, mas foi só um sonho, porque se isso me acontecer, a Marta desaparece da minha vida para sempre só para me fazer sentir que nunca terei nenhum domínio sobre ela. Ela ensinou-me sem que eu tivesse querido aprender que o medo de perder aqueles que amamos faz com que o nosso amor por eles cresça como uma bola de neve que rebenta com a nossa vida no dia em que já não conseguir descer mais a montanha. E depois vou chorar com saudades da Marta, vou ter pena de nunca ter ido à praia da infância dela, de nunca ter conhecido os sobrinhos ou decorado o nome dos pais.
Outro dia cheguei a casa e lá tinha ele outra vez atirado a caça para cima da mesa da cozinha, como se ainda vivêssemos no tempo do D. Afonso IV, o filho da mãe que mandou cortar a cabeça à Inês de Castro. Três perdizes e duas lebres, tudo morto e por esfolar, e eu com cara de parva a olhar para aquilo sem saber o que fazer. Sou boa caçadora, nunca tive medo de uma arma e sei que o gajo tem uma inveja surda e aguda da minha pontaria, mas daí a levar com a caça em cima da mesa da cozinha, vai um abismo que não quero saltar.
Cheguei à sala, estava o parvalhão a limpar a arma, e disse-lhe:
E o cabrão, sem levantar os olhos, com o pano cor de laranja de flanela na mão, a fazer festas no cano da espingarda como se fosse um gaja, responde, sem se dignar a levantar os olhos:
em boa altura de saberes.
Eu já o tinha avisado duas vezes que não queria a merda da caça em cima da mesa, que a deixasse à porta de casa da Rosa, que é a caseira da quinta, e que ela se encarregasse de tratar daquilo, mas o gajo é burro, é burro e obtuso, porque pensa que pode mandar nas mulheres, que são todas criadas dele, que pode pôr e dispor sem lhes pagar nada e ainda por cima andar por aí a meter-se com as miúdas da vila, mas comigo vai de carrinho, porque eu não paciência para aturar machismos do tempo da primeira dinastia e por isso respondi-lhe:
O gajo levantou os olhos, muito devagar, a desafiar-me e disse, ainda mais devagar.
E eu repeti. Então o gajo encostou a arma ao sofá, levantou-se com um movimento cinéfilo que me fez lembrar o Gaston do filme A Bela e o Monstro, chegou-se ao pé de mim e gritou:
E eu repeti, mas desta vez aos gritos. E o gajo, que é um cobardolas de merda, sentou-se outra vez e recomeçou a limpar a espingarda.
Foi então que me passei completamente dos carretos, fui á cozinha, peguei na merda da caça, atirei-lhe com os bichos mortos à tromba e lhe disse:
Saí porta fora, meti-me no carro e vim-me embora com a roupa que tinha no corpo, sem olhar para trás. Pelo retrovisor ainda vi o jipe dele a perseguir-me na auto-estrada, mas passei-o na Via Verde, porque como o gajo era bruto nunca tratado dos papéis.
Ainda o aturei várias noites a uivar como um cão à porta da minha casa de Lisboa durante mais três anos, até que agora, arranjou uma criadita qualquer que lhe deve esfolar a caça e me desamparou a loja.
Dizem-me que está velho e gasto, que perdeu aquele ar de cowboy que me enfeitiçou quando era miúda e ainda não sabia distinguir os gajos maus do muito maus. Mas agora só quero é que o gajo fique por lá com a Rosa, as criaditas, as perdizes e as lebres e nunca mais se lembre que eu existo, senão ainda pego na minha espingarda e lhe dou cabo do canastro que para o gajo aprender a não ser parvo.