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De repente, tudo muda. *

24.11.14

Todos começamos como estranhos. Não conhecemos o outro até ao momento em que o vemos, e depois, de repente, não mais que de repente como diz Vinícius de Moraes, tudo muda. E no entanto, as escolhas que fazemos no amor parecem-nos inevitáveis.

Há sempre um fundo trágico na génese de um grande amor; houve qualquer coisa misteriosa que nos levou para os braços daquela pessoa. Podemos chamar-lhe sorte ou acaso, mas na verdade sabemos que foi a nossa vontade, ainda que nos tentemos defender com o velho argumento, é mais forte do que eu. E este é o grande problema do amor, ele é sempre mais forte do que nós. E enquanto avançamos, sabemos que estamos a avançar. Nunca damos o primeiro beijo por caso ou por distracção, porque antes de o darmos, já o imaginámos mil vezes. Este é outro poder do amor, o da antecipação. Misturado com o desejo e a imaginação, pode transformar a nossa vida para sempre. É como a erupção de um vulcão ou um tsunami, com danos extensos no tempo e no espaço e por vezes irreparáveis.

Mas então porque avançamos? Eu acredito que nos apaixonamos para afastar a ideia da morte. E que amamos para sobreviver. O desejo que vem com o amor pode ser mais ou menos forte, mais ou menos carnal, Até pode ser apenas fraternal, sem qualquer erotismo, mas é uma parte do amor. Esse é aquele tipo de amor que sentimos pelos nossos melhores amigos: somos capazes de fazer tudo por eles. Amor, paixão, desejo, afecto, vontade, imaginação, hoje vejo tudo como partes de um todo e já dizia a sabedoria grega que o todo é maior do que a soma das partes. Por isso, mais do analisar o porquê, é importante perceber se o outro nos ama da mesma forma e está disposto a fazer por nós o que estamos dispostos a fazer por ele. Um amor feliz é um amor vencedor, os dois jogam em equipa, um mata e o outro esfola, e quando chega a hora do sossego é quando começa o circo.

Um amor a sério aguenta tudo: bons e maus momentos, desentendimentos, afastamentos, braços de ferro, hoje ganhas tu mas amanhã ganho eu, e depois tudo passa, tudo volta ao seu lugar, a vida segue em frente e se for mesmo para seguirmos juntos, a vida irá encarregar-se disso. Nada como ouvir a sabedoria chinesa que nos ensina a esperar. O mestre só aparece quando o aluno está preparado. O amor só aparece quando há um tempo e um lugar e uma razão para aparecer. E se for a sério, dura, dura, dura, como um bom casaco de caxemira: nunca perde o toque, o aconchego, a suavidade, a forma, o charme e o sentido.

Ando há tantos anos a escrever sobre amor que às vezes acho que quanto menos pensar no assunto, mais feliz posso ser. Estar sempre a dissecar o amor acaba com ele. É como uma erva daninha: se não lhe mexemos, multiplica-se, mas se nos pomos a esgravatar e a arrancar as raízes, acabamos com ela. O amor dá trabalho, desgostos, dores de barriga. O amor também cansa, também enjoa, também nos esgota. Mas é o sal da alma, o sal e todas a especiarias que o mundo pode ter. Um coração sem sal é um músculo triste e mecânico. Prefiro e meu que, embora seja dado a arritmias, sabe saborear o sal que a vida lhe vai trazendo. E se começamos como estranhos, nunca acabamos como estranhos, mesmo se tudo acabar.

Quando amamos alguém, nunca deixamos de amar essa pessoa. E esse amor morre connosco. O amor é a cola da vida, sem ele nada é possível.

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*Originalmente publicado na revista Flash

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