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O Animado

06.11.14

Tenho amigos assim, que são o sol e o sal da minha vida. Alguns de longa data e outros recentes, que entraram no meu coração com direito a lugar cativo e dele nunca mais vão sair, porque eu não quero, não deixo, e porque eles também se sentem lá bem. Tenho amigos sérios, filosóficos, nostálgicos, profundos, introspectivos, mas aqueles de quem mais gosto e cuja companhia me faz melhor são os Animados.

Os Animados são mais enérgicos, mais imaginativos e mais divertidos do que qualquer desenho animado e o tempo que passo com eles é sempre muito bem passado. Não interessa se é num casamento formal, ou sentados num banco de jardim da Avenida da Liberdade a roer o melhor cachorro quente de Lisboa no quiosque Hotdog Lovers, ou na praia a jogar ao prego e a ver quem apanha a melhor onda, porque eles me fazem sempre rir quando é para rir e pensar quando é preciso pensar. E se eu chorar limpam-me as lágrimas, e se eu me zangar com o mundo zangam-se comigo e depois ajudam-me a fazer as pazes, porque com eles estou sempre segura, estou sempre em casa e estou sempre em paz.

O Animado não é só um óptimo amigo; também pode ser um óptimo cunhado, o padrinho perfeito para os nossos filhos, a companhia ideal para férias e para fins-de-semana de far niente a jogar Trivial ou a tocar guitarra, a assar linguiça e a beber um bom vinho, porque um amigo animado é sempre uma luz, um guia, uma estrela na nossa vida, mesmo quando o quadro geral se fundiu, ou quando perdemos o Norte e não conseguimos levantar a cabeça e olhar para o céu.

Tenho amigos assim e movo montanhas por eles. Amo-os e defendo-os como irmãos, proclamo a quem em quiser ouvir que são as melhores pessoas do mundo, fundo clubes virtuais de fãs para eles dos quais sou a presidente, mimo-os sempre que posso, oiço-os sempre que devo e apoio-os sempre que precisam, porque sei que eles estão lá, sempre por mim e para mim, como diz o Pedro Granger que é um deles, até á ultima estrela do firmamento.

Um amigo animado só nos deixa chorar um bocadinho, porque sabe que a seguir nos vai fazer rir. E dá-nos abraços quando estamos carentes, e diz-nos que estamos giras quando sabemos que não estamos, porque ele vê-nos sempre com bons olhos e com o coração aberto para nós. Além disso um Animado sabe sempre o que está a dar, qual o filme que não se pode perder esta semana, que festas vão ser as melhores e leva-nos para todo o lado, porque fazemos parte da vida dele.

E quando a intimidade é tão forte e tão genuína que se transforma em desejo, o melhor é respirar fundo e deixar o tempo decidir o que o coração nem sempre entende. Pode ser carência ou pode ser verdade, mas só o tempo sabe. O tempo resolve tudo e uma verdadeira amizade nunca se perde, nem está certo que assim seja, porque cada amigo que temos é como ganhar a lotaria todas as semanas sem nunca ter comprado a cautela. Um amigo animado dá-nos o que mais precisamos; dá-nos sol e sal, dá-nos luz e cor, dá-nos mais vida à nossa vida. E por tudo isto nunca o podemos perder.

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O Amor Acontece

06.11.14

Faltavam dez minutos para as sete da tarde. Estava parada no sinal vermelho do Largo do Rato à espera de descer a Rua de São Bento quando um simpático quarentão do carro da frente saiu de rompante para abraçar, beijar e oscular sem pudor nem receio a mulher que saíra do carro que se encontrava antes dele. O encontro foi inesperado, magnifico, genuíno, brutal. Os dois riam-se e beijavam-se como se não houvesse amanhã, a energia que os envolvia era quase visível, rodopiando como um tornado. O sinal continuava fechado e assim permaneceu o tempo necessário para que o par inusitado trocasse mimos e abraços, certamente guardados durante muito tempo, porque o tempo que separa os amantes dos seus amados é sempre demais quando há tanto para dar e receber.

No rádio do meu carro tocava uma das minhas músicas preferidas, Somewhere over the rainbow, e de repente apeteceu-me rir e chorar ao mesmo tempo e agradecer ao universo a vida boa que me deu; os meus livros já publicados e todos os "qua" ainda vou escrever, o meu filho já criado e os que vou tendo emprestados, os meus pais e irmãos vivos, os melhores amigos do mundo, paz, saúde e o coração arrumado, sol e mar, um tecto e um abraço à minha espera. E antes que o sinal mudasse para verde, depois de cada um ter entrado no seu carro, levantei o braço fora do tejadilho e fiz o sinal do polegar para cima ao condutor da frente que me respondeu com o mesmo gesto e um sorriso de orelha a orelha.

Caro casal inesperado, não adivinho se são solteiros ou casados, amantes ou namorados, mas tenho quase a certeza que são muito amados, porque só assim um ser humano completo é capaz de tantos beijos e mãos pelo corpo todo em tão curto espaço de tempo. Já quase no final da rua de São Bento, vi que viraram à esquerda e segui em frente, com o mesmo sorriso que me tem acompanhado desde então.

Vou imaginar que tu, simpático quarentão, te chamas João e que tu, "quarentinha" de cara fresca e cabelos ao vento te chamas Maria. Vou cogitar que foram namoradinhos de praia durante a adolescência, que se zangaram, cada um casou com outra pessoa e que agora, já separados, voltaram a juntar-se há dias num hotel com vista para mar onde se amaram não como da primeira vez, mas muito melhor, já sem medo nem promessas, porque o que tem de ser tem muita força e estava escrito que, mais cedo ou mais tarde, iriam ficar juntos. Ou talvez se tenham cruzado há poucas semanas numa esplanada de Lisboa e começaram a falar, a contar, a rir e a partilhar as vossas vidas, sem receio do presente nem medo do futuro.

O que vos quero dizer é que naquela tarde de segunda-feira, quando faltavam dez minutos para as sete da tarde, recebi um presente maravilhoso e inesperado que me encheu o coração de alegria. E mais uma vez recordei o início da comédia O Amor Acontece em que o Hugh Grant diz mais ou menos isto, sempre que me sinto triste com o estado do mundo, penso nas Chegadas do Aeroporto de Heathrow. As pessoas em geral são levadas a pensar que vivemos num mundo de ódio e ganância, mas eu não vejo o mundo assim: parece-me que o amor está em toda a parte. Nem sempre é valorizado ou considerado digno de notícia, mas está sempre lá, entre pais e filhos, mãe e filhas, maridos e mulheres, namorados e namoradas, velhos amigos… quando os aviões embateram nas Torres Gémeas, que eu saiba, nenhum telefonema foi de ódio ou de vingança, todas as mensagens foram de amor. Portanto, se olhar bem à sua volta, verá que o Amor, de facto, está em toda a parte.

E está mesmo. Basta manter os olhos abertos e o coração atento. E vice-versa.

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Gavetas e Contadores

06.11.14

Explicar a um homem como se organiza o cérebro feminino é tão difícil como explicar a uma mulher como funciona o cérebro masculino. Por isso o melhor usar metáforas, porque estas existem para explicar o que a realidade não consegue. E vamos devagar, porque devagar se vai longe, e mesmo que a viagem acabe na próxima esquina, mais vale fazê-la em pequenos passos, para ir aprendendo pelo caminho e saborear as surpresas da jornada.

Comecemos então por uma metáfora simples: todos estamos familiarizados com os dois sistemas operativos mais populares do mundo, Mac e PC, certo? Mas quem funciona bem com um, não consegue perceber o fascínio de quem prefere o outro. E no entanto, cumprem as mesmas funções. Um é mais intuitivo, dizem os apaixonados pela Mac. Nada disso, respondem os da facção pró PC. Vocês têm vírus, dizem os primeiros. E os vosso computadores são mais frágeis dizem os segundos. E nem sempre a malta se entende.

Entre homens e mulheres também é um bocadinho assim. Nós olhamos para as mesmas coisas de maneira diferente. Os homens compartimentam tudo, as mulheres misturam tudo. Os homens são como contadores indo-portugueses, cheio de gavetas, cada uma fechada e separada das outras, sem comunicação, a não ser que por azar venha o bicho da madeira e comece a fazer furinhos. As mulheres olham sempre para a realidade como um todo: elas vêm o quadro completo, a três dimensões, com presente, passado e futuro, com cenários possíveis e quase impossíveis. As mulheres não olham para a realidade como ela é, mas como gostaria que fossem: elas projectam, intrigam, sonham, imaginam, deixam que a vontade lhes tolde a lucidez, mesmo quando sabem que se estão a deixar enganar pelos outros ou por si mesmas.

Os homens tendem a olhar para a realidade de forma mais objectiva: medem prós e contras, separam o bom do mau e tentam fazes escolhas. Nem sempre conseguem e nem sempre acertam, mas tentam. As mulheres acham que conseguem tudo. Eles funcionam por compartimentos, nós em modelo open-space.

Os homens querem sossego e a vida arrumada em casa. Guardam a adrenalina para a guerra e para a luta, que é como quem diz no trabalho e no desporto, mas quando chega a hora do descanso do guerreiro, deixam as armas e o escudo lá fora e transformam-se em peluches de sofá. Porquê? Em primeiro lugar porque têm as diferentes áreas das suas vidas divididas, e em segundo lugar porque, por mais bélicos que sejam, precisam de um braço para desligar do mundo. Esse braço pode ser a mais-que-tudo, se não lhes moer o juízo; caso contrário, preferem o braço do sofá, que não dá beijos mas também não cansa.

Os homens pensam menos no amor do que as mulheres, o que não quer dizer que para eles não seja igualmente importante. Aliás, a experiência ensinou-me que quanto menos falam do tema, mais confiáveis e sérios são em relação ao mesmo. Os homens que nos prometem o mundo uma semana depois de os conhecermos ou são malucos, ou são mentirosos, ou são as duas coisas.

Mas voltemos à questão das gavetas, porque me parece fundamental para bom entendimento entre os dois sexos. Não vale a pena esperar que um homem nos fale de amor enquanto o seu Benfica está em campo ou no decorrer de um renhido torneio de golfe. Ou se precisa de preparar uma reunião importante. Ou se foi promovido ou despromovido. Se ele partilhar alguns dos seus receios sobre a sua vida profissional, já representa uma grande prova de confiança. E quando um homem confia numa mulher, é meio caminho para se apaixonar por ela.

É preciso perceber de uma vez por todas que eles precisam de silêncio e de espaço e que não vale a pena forçar nem o tempo nem o modo. Basta fazer-lhes um sinal e pedir que abram a gaveta onde nos metem. E depois o truque é saltar lá para dentro e nunca mais sair. Se ele gostar mesmo de nós, irá guardar-nos para sempre. Um homem sabe avaliar uma mulher como quem avalia um tesouro. E raramente se engana.

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Filet Mignon

06.11.14

A única vez que viajei para a Argentina, país austral e de grande interesse cultural onde vi os maiores e mais suculentos bifes do mundo, estava grávida e, para grande azar meu, o meu organismo tinha enjoado carne. Pois é, acontece aos melhores. Ninguém imagina o que é ter um naco de lombo à frente da altura do Empire State Buliding a escorrer molho por todos os lados e saber que não se lhe pode tocar. 

Dizem que é na Argentina que vivem as pessoas mais bonitas do mundo, mas como na altura estava casada, também não me passou pela cabeça olhar para o lado, e portanto não reparei nos tais argentinos muito giros de quem toda a gente fala, até porque o meu marido era um deles e naquela época ninguém lhe chegava aos calcanhares. 

Mas o pior ainda estava para vir. O pior é que eu nunca mais consegui saborear a carne vermelha da mesma maneira. Ainda hoje quando peço carne num restaurante me sinto ligeiramente culpada, com excepção para o frango e o pato, que, como todos sabemos, não são bem nem carne nem peixe. Nunca mais comi bife tártaro e passei a dedicar-me quase exclusivamente aos bifes, desde que o molho seja uma especialidade da casa: o bife da Portugália, o bife do Snob, o bife do Café de S. Bento e outros que vou descobrindo aqui e ali, um pouco a medo porque os bifes são como as paixões, uma pessoa atira-se de cabeça, mas sem nunca perder a consciência de que as coisas podem azedar.

Quanto a hambúrgueres nem vê-los , com excepção para os minis do Guilty e do Olivier, entalados entre um delicioso pão de sementes e um especialíssimo toque de cebola confitada que fazem de uma vulgaridade um prato delicioso.

Há homens giros, há homens muito giros e depois há os homens Filet Mignon, que além de ser giríssimos, são inteligentes, divertidos, bem-educados, descontraídos, bem-dispostos e bem-sucedidos, a par com óptima pele, dentes que parecem um teclado de piano, abdominais modelo tanque da roupa, cabelos sedosos e razoável gosto na escolha das camisas e dos sapatos, são uma simpatia. Não há muitos, é certo, mas eles andam por aí. À primeira vista pode nem se dar logo por eles, mas com as festas de Junho e uma idas à praia, eles aparecem.

Voltando à carne e aos prazeres que desta se podem e devem retirar, volto ao básico: ou é Filet Mignon, ou então não vale a pena. As solas de sapato são para os sapateiros e carne que se transforma enfarinha quando deglutida não merece a minha simpatia. E mesmo que ainda não tenha conseguido voltar aos prazeres do saudoso tártaro, o meu paladar guardará para sempre a memória de tão intenso sabor.

É que há idades para tudo e certo tipo de aventuras, gastronómicas ou outras, não se revelam interessantes a partir dos 40. Mais vale um bom bife frito com um molho de mostarda, de café ou de cerveja, e já agora, acompanhado de um copo de tinto honesto encorpado do que um produto de fast-food amorosa. Na dúvida, sushi. Ou então, sashimi.

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Amor que é mesmo amor

06.11.14

O melhor de amar alguém é ter a capacidade de mostrar como e o quanto amamos o outro. Amar não é só proteger o outro, ouvi-lo e ajudá-lo, dar-lhe colo quando está carente e espaço quando precisa de ar; amar o outro está nos mais pequenos gestos, e por isso subscrevo Oscar Wilde quando diz que não há coisas nem grandes nem pequenas, todas são importantes.

Uma história de amor, para ser vivida a sério, precisa de ser alimentada todos os dias. Senão, não é amor, é outra coisa qualquer. Até pode ser uma grande paixão, regada a violentas doses de testosterona e de adrenalina, mas se o outro não estiver lá todos os dias para nós e nós para ele, não é uma história de amor. É um caso, uma aventura, um lance, como se diz no Brasil.

Um lance é um lance, um romance é um romance. Mesmo que duas pessoas não possam estar juntas todos os dias porque não vivem na mesma cidade ou trabalham em turnos diferentes, o amor obriga a que se telefonem e comuniquem sempre que podem, porque o amor é prioritário. E se um dia deixa de ser, então já não é amor. Pode ser companhia, encosto, conforto, preguiça de mudar, medo da solidão, mas já não é amor.

O amor é como um tsunami: inesperado, invasivo e letal. Quando nos apanha na curva, podemos fazer apenas uma de três coisas: fingir que não é nada connosco, baixar a cabeça e seguir em frente, recuar e resistir, ou abrir-lhe os braços e dizer: ok, vamos a isto.

Claro que nunca na vida é tão linear quanto parece: há quem corra atrás, faça tudo para conquistar o outro e depois entre em crise, há quem fuja à velocidade certa para ser apanhado quando quer e há quem fique quieto, sem se mexer, incrédulo e estupefacto, à espera que o outro faça um gesto profundamente dramático a ponto de nos fazer acreditar que é mesmo verdade. Nessa curva tão terna e lancinante em que o amor começa – e afinal tão parecida com a mesma curva terna e lancinante descrita por Alexandre O'Neill em Um Adeus Português que vai ser que já é o teu desaparecimento – quando amor acaba, é preciso saber respirar fundo e encarar a grande mudança que se aproxima com dignidade, elegância e respeito, porque existem apenas duas realidades que o Homem não controla: o Amor e a Morte.

Por amor, há quem mude de bairro, de cidade ou de país, há quem mude de emprego ou de casa. Porém, antes das mudanças exteriores, é necessário tempo e espaço para que o caos provocado por uma nova realidade se reorganize. O amor modifica-nos muito mais imaginamos. Por vezes, só alguns anos mais tarde nos apercebemos o que aprendemos com alguém que amámos e nos amou profundamente. O amor é ao mesmo tempo uma linguagem e uma aprendizagem, na qual a energia flui de formas tão evidentes quanto subtis, da cabeça aos pés, da razão ao coração, do consciente ao inconsciente, do passado ao futuro, vivido no presente a cada minuto, sem nos dar descanso ao mesmo tempo que nele encontramos toda a paz que precisamos. É o que nos faz adormecer a acordar sem nunca baixar os braços e a forma mais pura e difícil de respirar.

Um grande amor é como uma revolução: tudo muda de repente e depois demoramos muito tempo ajustar-nos à nova realidade. E quando ganhamos outra visão do mundo, precisamos de coragem para abolir a maneira antiga como víamos as coisas e adaptarmo-nos à nova vida que escolhemos. Se há cidades que mudam de nome e lugares onde nunca mais poderemos voltar, também há novas pontes por construir. E o futuro deixa de ser uma quimera para se tornar naquilo que queremos fazer dele. Dá trabalho, mete medo, mas se for mesmo amor, vale a pena. E se não for, morre pelo caminho.

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Ambição e Devoção

06.11.14

Ao longo da minha vida conheci dois tipos de pessoas: as conformadas e as ambiciosas. Para as primeiras, a vida é igual ao que sempre foi. Habituaram-se a querer o que sempre tiveram. Pesa pouco se viveram uma infância feliz, cheia de mimo e de atenção, ou se foram emocionalmente negligenciados, porque a cada pessoa é o resultado da mistura entre o que estava destinada a ser e aquilo que escolheu ser.

Eu estava destinada a ser professora, à imagem da minha mãe e da minha irmã mais velha. Mas em casa dos meus pais existiam muitos livros que chamavam por mim, e outras mulheres que não conhecia tornaram-se meus guias de crescimento: a Sophia de Mello Breyner, a Enid Blyton, a Pearl Buck, a Isabel Allende, por exemplo. E mais tarde, a Marguerite Yourcenar, a Jane Austen e a Agustina Bessa Luís. Imaginei-me desde muito cedo a ter uma vida semelhante à delas. Não adivinhei o quão solitária seria a minha existência ao escolher a escrita, mas nunca me arrependi, porque faço o que escolhi. Citando o grande personagem Serafim Saudade do nosso cómico colectivo, ‘sei que sou o que sonhei’.

Entre sonhar com um projecto, um amor ou um estilo de vida e conseguir concretiza-lo, podemos demorar décadas. No trabalho e no amor, o que mais conta é o amor com que trabalhamos e a dedicação que dispensamos ao amor. Sem dedicação não há sonho que se torne realidade. Por isso nunca comprei uma cautela, não ambiciono ganhar a lotaria. Prefiro sonhar que, com esforço, trabalho, dedicação e amor, vou conseguindo realizar os meus sonhos, dentro e fora dos livros.

Os ambiciosos nem sempre querem mudar o mundo, mas possuem a capacidade de mudar o seu mundo. Os conformados deixam-se ir na onda, o que mudar em seu redor quase nunca será porque eles se mexeram para isso. O que também aprendi sobre estes dois tipos tão diferentes do género humano é que os ambiciosos são focados, determinados e dedicados ao seu trabalho, às suas causas e sonhos. Os conformados são quase sempre dispersos, erráticos, confusos, pouco seguros, avessos à mudança, numa palavra, derrotistas. Terão outras qualidades, mas não possuem a mesma força, não são feitos da mesma massa.

Nas relações amorosas é comum ver uma mulher forte, decidida e determinada profundamente ligada a um homem disperso e emocionalmente dependente. É menos comum ver dois ambiciosos juntos e felizes, a remar no mesmo barco para o mesmo porto. Mas eles existem. São casais vencedores, pena do mesmo pato, no qual nenhum é dominado porque ambos são dominantes mas respeitam a força do outro e por isso entendem-se. Quando uma mata, o outro esfola, são como pena do mesmo pato e formam uma equipa de alta competição. São poucos, mas os que conheço, são unidos e felizes. Admiram e protegem o outro acima de tudo. Aplicam a dedicação ao amor e a tenacidade à resolução de conflitos.

Talvez a última lição que aprendi sobre o amor é que devemos procurar ter ao nosso lado quem está ao nosso nível de inteligência, de dedicação e de ambição amorosas. Alguém que olhe para nós com admiração sem nos colocar num pedestal, que tenha segurança e estrutura para ser um par que nos complete e não alguém que nos adule para depois nos sugar a energia que nunca teve.

O amor é muito parecido com o trabalho: é preciso saber como fazê-lo, dar-lhe força e asas, descansar de vez em quando e depois voltar ao que nos é mais querido e importante na existência. Quem não se atira nem se dedica, nunca conseguirá construir nada. E as pessoas mais felizes que conheço são as que puseram a mão na massa e mudaram de vida quando não estavam onde queriam. A devoção levou-as mais longe e ficaram mais perto de quem queriam ao seu lado.

 

 

 

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Amar e Confiar

06.11.14

Cada escravo carrega a chave da sua liberdade. Sempre que escrevo um livro, escolho uma banda sonora para me fazer companhia e afeiçoo-me a ela. É fácil uma pessoa afeiçoar-se a uma música, porque enquanto a ouvimos, vivemos coisas inesquecíveis. Por isso os casais apaixonados têm a sua música, que pode ser a que estava a tocar quando se conheceram ou quando trocaram o primeiro beijo. É claro que a mesmo música é partilhada por milhões de casais no mundo inteiro, mas a partir do momento em que a escolhemos, ela passa a ser só nossa, património inviolável do nosso histórico amoroso.

O mesmo acontece com os nomes que chamamos ao nosso amor e que tantas vezes nada têm a ver com o seu nome próprio, porque aquela pessoa, conhecida por toda a gente por outro nome, quando passa a responder por um nome que só nós lhe chamamos é um bocadinho mais nossa. Podem ser vários nomes, consoante a circunstância, porque a variedade faz bem às relações. É preciso imaginação para tudo na vida. Imaginação e trabalho são os segredos de um grande amor. E um grande amor não é um amor vivido em grandes momentos, mas construído com muitos momentos de amor, um dia atrás do outro, porque todos os gestos são importantes.

Comecei esta crónica com uma frase sobre liberdade porque quando me sento a escrever uma crónica, também escolho uma música. Esta semana, sem saber bem como, fui parar à Marcha Eslava de Tchaikovsky, o meu compositor russo preferido. Tchaikovsky é mundialmente conhecido pelas suites de bailado como O Quebra-Nozes, Romeu e Julieta ou O Lago dos Cisnes, mas a sua obra musical é extensa e extraordinária. Tanto as sinfonias como os concertos são de arrebatar os corações mais empedernidos e despertam o prazer pela música aos ouvidos mais duros.

O compositor russo que conheceu a glória em vida, teve uma existência sombria e atormentada, em grande parte pela morte prematura da mãe e também porque lhe era difícil aceitar a sua homossexualidade, ao contrário do seu irmão, também homossexual e seu único confidente. Tentando combater a sua natureza, chegou a casar com uma antiga aluna do Conservatório que era apaixonada por ele desde os 16 anos. Quando casaram, Antonina Molyukova tinha 28 anos e o casamento durou apenas dois meses.

Reza a lenda que o compositor ‘fugiu’ do leito nupcial na própria noite da boda. Num tempo em que a homossexualidade era vista como um crime, aguentar o segredo da sua natureza sob uma aura de sucesso terá dado cabo dele. Morreu aos 53 anos, não se sabe se de cólera ou de suicídio. Quando ouvimos a sua música, conseguimos sentir uma onda de sofrimento nostálgico que atravessa toda a sua obra. A sua ultima sinfonia, a “Patética” é o expoente máximo do seu tormento e talvez por isso mesmo, apesar de ser extraordinária, a que oiço com menos frequência.

Uma natureza atormentada é própria de um espírito artístico, quer pela sua génese profunda e indissociável do seu carácter, quer pelo tempo que é obrigado a passar sozinho a trabalhar. Um actor trabalha com a voz, com o corpo e com outras pessoas; um compositor, um pintor ou um escritor trabalham sozinhos. Não há outra forma de o fazer. E a solidão é como um polvo com muitas pernas, vai-nos cercando e apertando cada vez mais, e nem o sucesso nos poupa a essa condição. Por isso digo tantas vezes que aquilo que me alimenta também é o que me mata. Quando existiam faroleiros, eles encabeçavam a profissão mais infeliz do mundo, por causa do isolamento assim como os escritores. No extremo oposto estão os cabeleireiros, porque passam as horas do seu trabalho a embelezar os outros, criando com eles laços de afecto que são ao mesmo tempo leves e sérios. Um compositor ou escritor trabalha com os seus fantasmas e por isso, das duas uma: ou os domina, ou se deixa consumir por eles.

O mesmo acontece a outras almas atormentadas que não conseguem entender-se com os seus medos, fobias, traumas e fantasmas. Um grande amor pode ajudar-nos a encontrar o nosso caminho, mas para isso é preciso confiar no outro e em si mesmo, é preciso acreditar que juntos somos mais fortes do que separados e sobretudo que podemos ser mais felizes. O amor é sempre um caminho e um caminho tem necessariamente de nos levar a um lado qualquer. E, tal como os livros e as músicas, também nunca tem fim, porque voltamos a ele sempre que o nosso coração nos chama. O truque está e entregar a chave a quem amamos, porque sozinhos, nem sempre conseguimos abrir a fechadura. Imagino que Tchaikovsky tenha vivido como um escravo e por isso mesmo, a tristeza tenha contribuído para o seu fim. Ou não encontrou a chave, ou nunca confiou em ninguém para a entregar.

 

 

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A Fábula do Lobo Mau e do Peluche profissional

06.11.14

 

- Tirei uma senha para falar consigo e não sei qual é o meu número – disse o rapaz que estava no bar, depois de meia hora a olhar fixamente para a minha amiga. Vinha com um sorriso aberto e duas bebidas na mão. Estendeu-lhe um dos copos. Teve sorte. Era uísque. E ela gosta de uísque. Olhou-o de alto abaixo, e sem tempo para ponderar os prós e contras, respondeu:

- É o próximo.

A noite acabou na tarde seguinte. Quando ele saiu de casa dela, já passava das quatro. Não é uma história de amor, é uma história de atracção, de desejo e de tesão. Três semanas depois voltámos ao mesmo bar. E lá estava ele. Desta vez avançou com três copos. Como já tinha sido barmen pareceu-me que o fazia com grande facilidade e elegância. Ofereceu um uísque à minha amiga e uma Coca-Cola a mim.

- Reparei que não bebes álcool, - disse-me com o mesmo sorriso rasgado do primeiro dia. Os olhos faiscavam de desejo por ela e de repente pareceu-me ver-lhe crescer um par de orelhas bicudas e a boca pequena e fina transformar-se num focinho pontiagudo. A minha amiga chama-lhe o Lobo Mau. Saio com eles e já sei o que a casa gasta. Um predador reconhece sempre outro predador. E eu fico a gozar o prato, a assistir de camarote ao eterno jogo de sedução entre dois espertalhões que se divertem com a companhia um do outro, e no dia seguinte logo se vê, tanto faz se voltam a encontrar-se dali a dois dias ou duas semanas, porque a vida continua e a fila anda.

Há mulheres para quem a fila anda mais devagar. Demora a avançar. Às vezes uma pessoa esteve na fila do guichet errado e só quando chega lá é que percebe. Como quando quer apanhar o eléctrico e o confunde com um comboio. Em vez de ir parar ao Castelo de S. Jorge vai parar às Mercês. Erros de percepção. Acontecem aos melhores. Mas o importante é que a fila anda. Se uma pessoa se engana no caminho, volta atrás e olha para o mapa. Traça uma meta e segue um plano. Mesmo que o plano seja ficar quieta até a vida nos trazer um plano novo.

O pior é quando um homem que já fez parte da nossa vida e se foi embora quer voltar atrás no tempo, apagar o passado recente e nos diz: Tirei uma senha para voltar para a tua vida, mas não sei qual é o meu número. Dizemos-lhe que a senha dela já passou, que volte no dia seguinte, como se fosse a Loja do Cidadão onde as senhas da Segurança Social esgotam menos de meia hora depois do horário de abertura? Ou informamos apenas que o sistema de senhas só vale para a primeira volta, que há comboios que só passam uma vez, quem sabe, numa próxima vida a malta ainda de cruze e role um clima, como dizem os nossos irmãos brasileiros?

Quando um homem perde a senha, perde tudo. Perde o tempo de ficar com a mulher que queria. Perde a oportunidade que a vida lhe trouxe. Mas perde porque quer. Porque se quisesse mesmo, não teria tido dúvidas, não teria virado as costas, não teria pedido um tempo e um espaço. Tempos dão-se no futebol e quanto ao espaço, manda a lei básica da física que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Mais vale um Lobo Mau assumido do que um peluche hesitante e profissional. Com ou sem senhas, é preciso saber quando um homem tirou a senha está ali para ir e voltar, ou para ficar. Se o objectivo for puramente lúdico, o tempo não conta e o espaço acaba por nunca ser ocupado, porque é para o que é. Mas se o espírito for outro, se houver paixão, envolvimento, vontade de permanecer, de estar e de ficar, não dá para desaparecer e tentar a sorte numa segunda volta. As senhas é para quem as quer agarrar. Caso contrário, a fila anda. E o guichet fecha.

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Bio

05.11.14

Nascida em Lisboa em 1965, Margarida Rebelo Pinto revelou desde cedo uma enorme paixão pela escrita. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Clássica, mas antes de terminar o curso iniciou a sua actividade como copywriter em agências de publicidade com 21 anos e como cronista na Imprensa escrita aos 22 anos no jornal ‘O Independente” e mais tarde “Sete”, “Marie Claire”, "Olá Semanário" e “Diário de Notícias”.

Foi repórter do Canal 1 da RTP no início da década de 90 e nunca mais deixou de colaborar regularmente na imprensa portuguesa, em publicações onde manteve crónicas durante vários anos como "Jornal de Notícias", revista "Máxima", "Seleções" do "Readers Digest", Revista "Maxmen", "Egoísta" e "Cosmopolitan"

O primeiro romance de Margarida Rebelo Pinto, "Sei Lá", não foi propriamente o seu baptismo na escrita. A autora juntou aos ingredientes de saber estar nos sítios certos, à hora certa e com os amigos necessários, uma história que concretizou na sua cabeça, dando-lhe então em Março de 1999 a forma em livro. Nesse mesmo ano, foi vencedora do prémio literário Fnac 1999, tendo a obra já superado os 280 mil exemplares vendidos. Seguiram-se outros best- sellers como "Não Há Coincidências", "Alma de Pássaro", "I’m in Love With a Pop Star" e "Pessoas como Nós".

Com este conjuntos de obras que são como um espelho da sociedade portuguesa actual, a autora abordou a escrita de uma forma simples e acessível, criando com os leitores um fenómeno de identificação que a tornou muito popular e a colocou como a mais conhecida precursora da nova literatura urbana

A publicações dos romances foi sendo intercalada com a de livros de crónicas e de mini-ficções - "Crónicas da Margarida", "Artista de Circo", "Nazarenas e Matrioskas", "Onde Reside o Amor", "Vou Contar-te um Segredo", "A Minha Casa é o Teu Coração", e mais recentemente, "Há Sempre Uma Primeira Vez". Estes livros constituem compilações dos seu trabalho publicado na imprensa ao longo de mais de 25 anos em diversas publicações e revelam a versatilidade da autora tanto como contadora de histórias como em observadora da condição humana.

Margarida gosta de explorar outros géneros literários, como as cartas de amor, nos quais se incluem outros best-sellers de grande sucesso como "Diário da Tua Ausência", “ O Dia em que te Esqueci” e “ O Amor é Outra Coisa”. Este último combina uma carta de despedida com uma fábula para adultos

Outro género literário que apaixona a escritora é o histórico. Em 2011 publicou "Minha Querida Inês", um relato apaixonante sobre os últimos dias de vida de Inês de Castro, a maior heroína romântica da Historia de Portugal, que constitui mais um enorme sucesso de vendas.

A sua obra literária está publicada no Brasil, Espanha, França, Holanda, Bélgica, Itália e América Latina.

Foi autora de dois livros infantis cujos direitos de venda reverteram para a Associação Acreditar: "A Rapariga que Perdeu o Coração" e "Gugui, o Dragão Azul".

Paralelamente à escrita, Margarida dedicou-se também ao guionismo, sendo a autora do telefilme da SIC "Um passeio no parque" (2000) e do guião do seu primeiro romance “Sei Lá” que chegou ao cinema em 2014 realizado por Joaquim leitão.

A escritora tem sempre mais ideias e projectos do que tempo para os realizar, por isso escreve todas os dias de segunda a sexta e gosta de escrever em viagem.

É divorciada, vive em Lisboa, é mãe de um rapaz com 19 anos e faz ginástica quatro vezes por semana. Gosta de escrever em qualquer lado, por isso anda sempre com um pequeno caderno. Diz que são as historias que a apanham e que quase todos os seres humanos podem dar boas personagens.

Os Milagres Acontecem Devagar é o seu 11º Romance e 20º livro

 

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